14/06/2010

Quebrando a rotina

A cadeira está quente, meio dura, mas parece ter o formato exato da minha bunda. O chão segura meu pé como se tivesse ventosas e todas as janelas olham para mim. Elas tem o olhar quadrado e a língua pra fora, movendo apenas o globo ocular quando alguma mosca se move, para um lado e para o outro. O gato não consegue se soltar do sofá de pano, que enroscou suas patas com fios dourados tão finos que são quase invisíveis.
Todas as aranhas estão hipnotizadas pelo branco da parede, que vibra em ondas constantes ao ritmo do ponteiro dos segundos.
As baratas não saem do banheiro, porque o bidê as convenceu de que aqui o ar é cor de rosa e, quando inalado, provoca queimaduras de dentro para fora.
As plantas parecem agora conspirar contra mim, conversando com o olhar com a mesa, seguida do seu exército de quatro cadeiras verdes.
A porta, liderando os móveis, entoa um mantra, um zumbido constante e seco, que faz a minha cabeça ondular.
Me levanto com dificuldade, a cadeira estava quase que me abraçando pelos quadris sem que eu percebesse. Caminhar até a cozinha foi uma tarefa árdua, pois o chão parece chiclete derretido pelo calor do centro de Goiânia. Quando levanto o pé para o próximo passo, soa uma onomatopeia: sblosh, sblosh, sblosh. No meio do caminho olho para dentro do quarto vazio e vejo o ferro de passar se escondendo dentro do velho guarda roupa, que mal consegue abrir os olhos devido a idade.
No meu quarto tudo parece estar normal, a não ser pelo detalhe incomodo de eu não poder ver a expressão da minha cama, que está virada de costas pra mim. Eu tenho medo dela.
Passo pelo banheiro e vejo as baratas amoadas ao pé do bidê que conta histórias de como já defecaram em sua cara por engano e de como ele sentiu náuseas após o episódio.
Chego à cozinha. A garrafa de café dá altas gargalhadas com a de chá, que espalha encorpadas gotas fumegantes do seu conteúdo devido a crise de riso. Todas as xícaras estão em formação e aguardam a ordem da comandante porta. A máquina de lavar, com uma mão repousada sobre a outra por cima da barriga e os olhos solenemente fechados, repete sem pausas que não sabe de nada, nunca soube de nada, não tem nada a ver com isso. O fogão e a geladeira, medrosos, fingem estar dormindo. Me abaixo para abrir uma porta do armário. Pego a caixa que está lá dentro, a abro com cuidado. O pequeno frasco que guarda um conteúdo gelatinoso e cor-de-burro-quando-foge não tem qualquer inscrição. Retiro a tampa, engulo todo o conteúdo, me engasgando, sentindo gosto de jornal e a garganta em chamas. A intensidade do mantra aumenta e todos os móveis ficam atentos ao meu gesto, com a boca aberta. Caio no chão com violentos espasmos, a saliva me escapa à boca, a urina me escapa à bexiga, as fezes me escapam ao intestino, o sangue me escapa ao nariz. Agora sim, quem venceu fui eu.

2 comentários:

Unknown disse...

quantas gramas tem cada palavra? pense em quantas árvores você matou para acender uma fogueira de todas elas... muitas, muitas coisas escuras e perdidas ficam atrás da porta... ela que manda em tudo, sempre, a porta... o umbral

José Abrão disse...

eu fiquei sentindo calor e achando tudo abafado só de ler